NOSSA BOSSA

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Desde a primeira vez que fui para o exterior – a interiorana Dayton, Ohio, cidade dos Irmãos Wright, cujas tramóias imperialistas roubaram de Santos Dummont a paternidade da aviação – fiquei espantado, e ufanista, com a persistente presença da Bossa Nova como música de fundo incidental em todo lugar. Viajando pelo mundo é impossível deixar de ouvi-la, reconhecer a assinatura sônica pátria. Obviamente, raros sabem que este DNA é do Brasil, porque todos nossos temas famosos foram açambarcados e totalmente americanizados.

Na volta passei a me interessar bastante pela Bossa Nova, que muitos consideram a mais destacada contribuição brasileira para a cultura mundial. Influência que avançou muito além do meramente típico, regional e exótico, impôs uma calorosa, simpática e inovadora matriz musical. Antes da Internet, do Google e dos livros do Ruy Castro informações não eram fáceis, mas o registro de nascimento do movimento está firmemente documento e estabelecido: o LP Canção do Amor Demais de Elizete Cardoso, de 1959.

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Disco curioso, sub-reptício. Capa sóbria, com pretensões eruditas, que declara, explicitamente: “Música: Antonio Carlos Jobim / Poesia: Vinícius de Morais”. Porque “poesia”, ao invés de “letra”? Para diminuir a conotação comercial e preservar o respeito oficial ao poeta, então embaixador do Itamarati. LP meio burocrático, contudo, duas faixas já continham a alteração genética revolucionária, o DNA mutante. As músicas Chega de Saudade e Outra vez, historicamente, traziam os primeiros registros da batida sincopada e novidadeira do irreverente violão de João Gilberto, vírus preparado para contaminar o mundo.

Pelos tropeços da sorte, até o titulo da primeira faixa era premonitório e profético: Chega de Saudade. Um manifesto, programa e diretriz para o novo e ousado movimento. Inclusive, nada é perfeito, os privilegiados que não entendem os desafinados, acham que os versos mais babacas já escritos estão nesta música: “Pois há mais peixinhos a nadar no mar / do que os beijinhos / que eu darei em sua boca”. Coitados, eles merecem serem fotografados na nossa Rolley-Flex.

É intrigante ouvir o CD, cinqüenta anos depois. Um time inteiro, 11 faixas, de músicas do passado, repisados sambas-canções, dor-de-cotovelo, canções de amor e dor… Porém, duas faixas revolucionárias, 1 e 9, carregam a estranheza, o inusitado; são o salto do gato, o vagido do novo, o “quëm quëm d’O Pato rouco”. O violão contraventor e desabusado. Referência da época, a sublime Elizete, logo Elizeth, era uma concessão ao gosto dominante, reouvindo é fácil constatar que, mesmo nas duas faixas predestinadas, a interpretação dela continuava tradicional, mantendo o sotaque do antigo, seguindo a bossa velha. Faltava a ginga bossanovista.

clip_image003Quatro anos depois, em 1963 – ano de lançamento do LP Please Please Me, primeiro dos Beatles – João e Astrud (ela, pelos acasos da arte) gravaram Getz/Gilberto. Então a Bossa Nova recebeu o Green Card, entrou na veia jugular da cultura americana, daí virou mania universal.

Neste Big Bang da Bossa Nova, parcos quatro anos, nasceu a grande maioria dos famosos temas (quase sempre de Tom Jobim) que plasmaram, definiram e consolidaram o Brazillian Jazz: Ondas/Wave, Insensatez/How Insensitive, Garota de Ipanema/Girl from Ipanema, Corcovado/Quiet Nigths and Quiet Stars, Vou Te Contar/Waves etc. Dezenas de obras primas, inesgotável tesouro para vozes femininas, perpétua fonte para os instrumentistas.

Infelizmente os letristas originais foram eclipsados, porque o sucesso planetário aconteceu na versão inglesa. Uma confissão, uma heresia, uma exceção: pensando em Poesia pura, prefiro Insensatez (How Insensitive) na versão gringa. Poeticamente, mais inspirada, refinada e sutil. Emocionalmente, mais contundente, profusa e complexa.

Ainda hoje uma vasta legião de melômanos, audiófilos e outros apaixonados têm saudades daqueles quatro anos ensolarados, daquela explosão de criatividade, quando a poesia escapuliu para o mundo. Por causa disso são consumidos vorazmente CDs dessas sereias cantoras Rosa Passos, Eliane Elias, Ithamara Koorax, Leila Pinheiro, Diana Krall, Laura Fygi, Lisa Ono… Centenas de deidades que frequentemente saciam suas sedes nas fontes daqueles tempos fartos, buscando o encantamento da poeira de estrelas para suas vozes. Amamos essas moças que, feito as musas antigas, bebem das poéticas águas do Monte Parnaso Pão de Açúcar.

Texto de autoria do Colaborador Douglas Bock
Também conhecido como “ZpinoZ” ou simplesmente "Z"